sexta-feira, 18 de junho de 2010

TRECHO DA MINHA HISTÓRIA

Semana passada, estava eu remexendo no baú das minhas fotos antigas, quando olhei para um retrato amarelado cujo especial detalhe me remeteu a um saudoso passado.
Brevemente me agitei e, em uma súbita ação, apanhei um papel e um lápis, que prontamente roubaram meus pensamentos transbordantes de boas lembranças e traduziram em preciosas letras aquele trechinho da minha história.
Não era dia especial, tampouco eu escritor, o que não me impediu de registrar o que senti naquele momento:
Nasci José, no dia 20 de maio de 1950, numa Família Silva. Sou mestiço - meio negro, meio índio.
Fui criança até oito anos, quando comecei a trabalhar no café, para ajudar nas despesas do casebre cedido. Mamãe dizia para eu batalhar jovem para descansar quando velho; vivendo de aposentadoria e brincando com os netos. Fui pouco à escola. Não dava pra deixar a obrigação do trabalho para ter que estudar. Ainda assim consegui completar o quinto ano do ginásio. Eu era o mais velho e incumbido de levar comigo o João, o segundo filho. Éramos em quatro.
João e eu éramos os únicos filhos-homens, eu o levava pra todo lado atrás de mim; fosse à escola, à praça, à igreja. Estávamos sempre bem vestidinhos e os cabelos suavemente crespos penteados com gumex. Minha mãe cosia nossas roupas lá no alpendre, sempre que o brilho do sol cessava.
Par de sapatos nós tínhamos um só e, como sempre saíamos juntos, papai sempre dava aquele tímido jeitinho de nos deixar contentes. Punha-nos sentados sob a árvore mais florida e colocava um pé de sapato em cada um. João sempre ficava com o pé esquerdo porque era canhoto e gostava de ir chutando pedrinhas pelo caminho. Nossos pés descalços ganhavam uma alva tira feita de pano de saco de açúcar. Para nós isso era uma festa. Descíamos do galho ensaiando um deambular manco, como se o maior de todos os bichos-de-pé tivesse comido a integralidade do nosso pé desnudo. E lá íamos nós: ele coxo do pé direito e eu do pé contrário.
Cheios de compaixão, todos os que por nós passavam, generosamente ofereciam alguma ajuda, ora uma carona no caminho para a escola, ora um pedaço de pão para o café do dia seguinte. Nosso riso era tímido e envergonhado.
Que bom mamãe ter guardado esta foto de um desses momentos. Como fui feliz
!”
De volta à minha realidade, percebi que minhas lágrimas encharcaram aquelas faixas naqueles pés saudáveis.
Quase seis décadas depois, em um dia qualquer, num mês qualquer, de um ano qualquer, ainda sou da Família Silva e continuo um José, mestiço – meio negro, meio índio. Sozinho.
Fui útil até cinquenta anos, quando esse lugar chamado sociedade me taxou de velho pela primeira vez.
Ter ido pouco à escola, não me fez doutor, mas me fez braçal trabalhador. Não moro mais em um casebre cedido, mas continuo naquele mesmo cafezal, sob o ardido sol derramado sobre a terra.
Agora sou coxo de verdade, a esperar pelo descanso profetizado por minha saudosa mãe.
Já não encontro mais aquelas pessoas generosas que me ofereciam carona e me ofertavam um pedaço de pão. Não sorrio mais, tenho a falta de orgulho.
Sinto meus dias acabando e uma missão que ficará por cumprir em vida.

4 comentários:

  1. Dura e sofrida história de José, dos tantos Josés do nosso Brasil. Mesmo triste há nela uma beleza de vida, de paz. Seu belo texto me fez refletir. Obrigada Lucimara!! Um bom dia, um bom final de semana, beijos no seu coração ;)

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  2. belo texto para uma muito triste realidade, a dos mais velhos...
    me tocou muito.
    abs

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  3. Obrigada por participarem!
    Realmente é a dura, sofrida e triste realidade que muitos de nossos irmãos enfrentam.
    Abraços e bom final de semana...

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  4. Me emociono sempre com essas coisas. É uma história singela, apesar de triste. É a vida, nunca é o que sonhamos, mas escrever ajuda a aliviar as dores, tenho certeza.

    Lembra um pouco a minha infância no sítio... tive 8 irmãos, e foi difícil, mas terminei os estudos, graças a Deus. Tive já tanto sonho, amiga... a vida foi quem decidiu. Espero que um dia eu volte a sonhar.

    Au revoir.

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