domingo, 31 de julho de 2016

SAGRADO ENTARDECER

Era terça-feira. Do altar ele a vê adentrar a igreja. Alta, esguia, aparentando trinta e poucos anos. Chorava soluçando. Respirava profundamente. Ele apenas a observava cheio de compaixão. Era o momento da exposição do Santíssimo.
Paramentado, o religioso tentava se concentrar no momento sagrado, mas a pobre moça roubava-lhe a atenção. Aquele alheio sofrimento causava-lhe desconforto.
De onde viria aquela jovem senhora? Por que chorava tão desesperadamente?
Ao término do rito diário, antes da missa das dezenove, o padre aproximou-se da mulher e disse:
- Em que posso ajudá-la, minha filha?
Não obteve resposta. E insistiu:
- Moça, quer conversar?
Ela fitou os olhos nele, levantou a cabeça lentamente e caminhou rumo às escadarias, sem dizer uma palavra.
O padre permaneceu ali porque já estava próximo do horário da missa. Proferiu em voz alta que Deus a abençoasse.
No dia seguinte, ao arrumar o altar, viu novamente a moça entrando na igreja. Bem vestida, aparentemente calma, ficou ali durante a oração ao Santíssimo. Calada, reflexiva, em posição de oração. Às vezes o choro era silencioso e ininterrupto. Isso se repetia pelo menos três vezes na semana.
Numa quinta-feira, ao fim do ritual, ela permaneceu sentada. Desta vez, o padre aproximou-se e, também calado, sentou-se ao seu lado.
Padre Pedro era alegre, muito humano e solícito; por esse motivo, era muito querido pelos fieis. Há cinco anos estava à frente daquela paróquia. Conseguiu arrebanhar muitos dos católicos que estavam distantes das missas.
- Tudo bem, padre?
- Estou bem, com a graça de Deus! E a senhorita? Há dias que a observo. Por que chora tanto?
Conversaram durante vinte minutos.
 - Ok! Procure-me, então, na segunda, na casa paroquial, para a confissão.
- Combinado! Segunda, às 17h30, padre. Eu irei.
Às segundas não celebrava missas lá. Padre Pedro aproveitava o dia para organizar a casa paroquial, descansar e, vez ou outra, atender alguma confissão. Lá tinha um terreno de árvores frutíferas, onde colocava sua cadeira de balanço. Relaxava, fazia leituras e apreciava estar mais próximo de Deus por meio da natureza.
Era manhã de um cinco de outubro. Acordou cedo, organizou a casa, alimentou os animais. Fez caminhada, almoçou. À tarde, deitou-se em sua rede no quintal. Adormeceu. Acordou com o soar da campainha. Era a fiel que iria confessar-se.
O Padre foi até a porta, convidou-a para entrar. A tarde estava muito bonita.
- Posso atendê-la aqui mesmo? A igreja está fechada...
- Óbvio, padre. Não há problema.
- Entre! Esteja à vontade, filha.
Sem hesitar, ela entrou, seguiu-o até o quintal. Ele ofereceu-lhe uma cadeira.
- Conte-me, minha filha! O que a traz aqui?
- O senhor, padre! – exclamou ela, ensaiando um riso com o canto da boca.
- Não entendi! – manifestou-se ele, um pouco confuso.
- Pedro, você não está me reconhecendo? - retrucou.
- Continuo não entendendo, senhorita.
- Pedro, sou a Lúcia. Como pôde se esquecer de mim? – indagou inconformada.
Com a cabeça baixa, o padre não esboçava nenhum movimento.
- Não se recorda de nossos entardeceres lá atrás da Matriz de Santo Antônio? - persistia a moça. Foi você quem me tirou a pressa de ver a noite, que me mostrou a beleza cotidiana do adeus do sol, lembra? Passei anos à sua espera...  Ah, Pedro...
Padre Pedro ficou estático. Com os olhos na direção do sol poente.
- Prossiga! – ordenou ele, enrubescido, encarando-a rapidamente.
- Pedro, eu não estou brincando! Veja essa tarde! É como as tardes em que nos encontrávamos. Há anos choro todos os dias esse horário, quando me lembro do nosso esconderijo, daquilo que poderia ter sido. Eu amava, e ainda amo, aquela incerteza... As reticências do nosso passado, Pedro...
 - Lúcia! – ele a interrompeu.
- Diga, Pedro.
- Eu sou padre – disse-lhe, tocando levemente e delicadamente a face.
- E aquelas juras, Pedro? E nossas tardes cheias de poesia? Você me comparava ao crepúsculo, lembra? Você não é mais aquele homem corajoso? Você me prometia a eternidade, gostava de se deitar comigo na grama e olhar o céu alaranjado, aguardando a chegada do cintilar da lua... Eu ainda te amo.

[Silêncio]

Lúcia saiu da casa paroquial quando era noite. A tarde envelheceu e a moca foi-se embora a pé, sem rumo, cambaleante.
Padre Pedro, atabalhoado, passou a noite em claro. No dia seguinte abriria a Igreja às seis.
Às cinco e meia já havia tomado o café. Pegou a chave e foi para a Igreja. Passou o dia ali. Às dezessete e trinta começou a arrumar o altar. Estava inquieto. O horário da exposição do Santíssimo se aproximava. Nem sinal da moça desta vez.
Padre Pedro a esperou por dias, semanas e meses para conversar após o dia da confissão. Não tinha nenhum contato para que pudesse chegar a ela.
- Senhor, Senhor! Eu sei que tudo sabes! – orava o padre em uma tarde qualquer.
Durante muitos dias, punha-se de joelhos e permanecia em misterioso silêncio.  Os entardeceres de padre Pedro pareciam cinzentos agora. As portas para a noite eram abertas sem surpresas. Nas orações, pedia a Deus sabedoria.
Seguiu com sua vida na paróquia.
Cerca dez meses depois, Lúcia apareceu em um começo de tarde. Padre Pedro ainda estava na sacristia. Ao reconhecê-la, lá de dentro, veio ao seu encontro. Parou, encarou-a e disse, com um tremor característico na voz:
- Lúcia, quanto tempo! O que a traz aqui?
Lúcia respirou fundo, apontou para o cesto próximo aos seus pés e sorriu:
- Oi, Pedro! Quero batizar o bebê.

2 comentários:

  1. Noooooooooossa, que lindo!Adorei .Bem bolada! Escreves e nos prendes! bjs, chica

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